A hanseníase, popularmente conhecida
como lepra, é uma das doenças mais longevas da História, identificada em
relatos já no século 6 a.C.. E, apesar de erradicada na Europa e nos
Estados Unidos, ainda é um dos grandes problemas nacionais de saúde
pública. O Brasil é o segundo país do mundo com maior incidência da
patologia — perde apenas para a Índia. Dados preliminares do Ministério
da Saúde apontam 24,6 mil novos casos em 2014. Mas esse número deve
aumentar na contabilidade final, que só será divulgada em março. O que
significa que o país ainda está muito longe de erradicar a doença, meta
divulgada em 2012.
O motivo para que isso ocorra, na
opinião dos profissionais do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/ Fiocruz) que
conduzem a pesquisa e o atendimento ao agravo, resume-se numa frase: a
hanseníase é uma doença invisível. “A sociedade não quer saber que ela
existe. Não é uma doença que apareça na mídia. Não está na moda e não
interessa aos epidemiologistas. É pouco estudada pela saúde coletiva.
Devido ao estigma, o doente tenta escondê-la a todo custo. Como não
provoca mortes, suas estatísticas não chegam a alarmar. Por isso, é uma
doença que não incomoda a ninguém, a não ser aos próprios doentes. E
muitos desses sofrem por toda a vida, incapacitados e com dor, em
silêncio”, define Euzenir Sarno, chefe do Laboratório de Hanseníase do
IOC, que pesquisa o tema na Fiocruz desde 1986.
Desafio no diagnóstico - O
Ambulatório Souza-Araújo, unidade assistencial do Laboratório de
Hanseníase do IOC, é um dos principais centros de referência no Brasil. É
o único, inclusive, a já ter recebido certificado de excelência
internacional — teve sua acreditação concedida, em 2014, pela Joint
Commission International (JCI) e pelo Consórcio Brasileiro de
Acreditação (CBA). Seus números de atendimento ilustram um dos
principais desafios no combate à doença no país: o diagnóstico correto.
Em 2014, 805 pacientes recorreram ao ambulatório com suspeita de
hanseníase. Mas, destes, apenas 115 realmente eram portadores do agravo.
Ou seja: 85% das pessoas — a grande maioria encaminhada por outros
serviços de saúde — não haviam passado por um processo eficaz de
diagnóstico.
Apesar de não haver nenhum teste
laboratorial que identifique com precisão a doença, o diagnóstico da
hanseníase não é difícil. O problema é que, diferentemente da maioria
das outras doenças, exige o envolvimento de uma equipe multidisciplinar,
com dermatologistas, neurologistas e fisioterapeutas. Além de alguns
testes simples, como o que avalia a sensibilidade das lesões, uma
conversa aprofundada com o paciente é essencial para que o profissional
de saúde possa respaldar a suspeita. “Mas o que percebemos é que os
pacientes chegam ao Souza-Araújo sem terem sido devidamente examinados.
Com isso, uma responsabilidade do atendimento básico acaba transferida
para o centro de referência”, lamenta o médico José Augusto da Costa
Nery, responsável clínico pelo ambulatório.
“O diagnóstico da hanseníase tem sido
negligenciado pela própria classe médica. Os padrões para essa etapa
precisam ser aprimorados, para que possamos enfrentar a doença de fato. É
um equívoco imaginar que o paciente demora a procurar atendimento. Já
recebemos casos de pessoas com hanseníase que passaram por 13 médicos
diferentes, sem ter o diagnóstico”, completa.
Como as lesões iniciais da hanseníase
podem ser confundidas com problemas dermatológicos, e as equipes de
atenção primária pelo Brasil não costumam ter profissionais de muitas
especialidades atuando de forma integrada no diagnóstico, muitas vezes o
paciente demora a ter a doença identificada. E, quanto mais tempo fica
sem o tratamento, maiores as probabilidades de contaminar parentes e
amigos. “Cada caso não diagnosticado vai infectar pelo menos outras duas
pessoas”, estima Euzenir.
Essa negligência, que começa no
diagnóstico, também se manifesta nas demais etapas do atendimento. Uma
delas diz respeito ao estigma, outro grande desafio. Isso porque não
basta tratar, com remédios, a pessoa que procurou o serviço de saúde. A
hanseníase ainda é uma doença com forte carga de preconceito na
sociedade brasileira, e o paciente vai precisar do acompanhamento de um
assistente social para lidar com esse problema. Além disso, a atuação de
um assistente social é muito importante para identificar as pessoas que
convivem de maneira próxima com o doente, e que podem estar, também,
infectadas.
Preconceito e silêncio - No
Ambulatório Souza-Araújo, todos os pacientes são atendidos pela
assistência social tão logo recebem o diagnóstico. Assim podem tirar
todas as suas dúvidas e são orientados a identificar, na família e no
grupo de amigos, quais pessoas mais próximas podem ter sido
contaminadas. Estas devem, então, agendar consultas no ambulatório.
Todas as sextas-feiras, o atendimento é exclusivo para os parentes, que
são examinados e encaminhados para tomar a vacina BCG. Apesar de usado
originalmente contra a tuberculose, vários testes comprovam que o
imunizante protege também da hanseníase.
Um problema, porém, é que muitos acabam
escondendo a doença da família e dos amigos, por medo do preconceito.
“No dia a dia do ambulatório, testemunhamos muitos casos de doentes que
perdem o casamento. A mulher ou o marido vão embora, com medo do
contágio”, relata Nery. “A hanseníase não provoca apenas lesões nos
nervos e na pele. Ela é incapacitante, também, do ponto de vista moral e
psicológico. E isso precisa ser levado em conta pelos serviços de
saúde.”
Assim que começa o tratamento, diminuem
muito as chances de o paciente contaminar outra pessoa. Mas, como a
hanseníase tem um tempo de incubação muito extenso — pode levar anos até
que apareçam os primeiros sinais — é fundamental que a família também
seja examinada e orientada.
E esse é outro desafio. Porque, em
geral, as estratégias de enfrentamento da doença não incluem a chamada
“busca ativa”: o acolhimento das famílias dos pacientes, como faz o
Ambulatório Souza-Araújo. “O sistema [de saúde] não está preparado para
fazer exames num número grande pessoas que não estão doentes. Então a
busca ativa acaba não acontecendo de forma abrangente. Com isso, se
desenvolve uma cadeia que não conseguimos quebrar”, descreve Euzenir.
Atenção mesmo após a cura - Outra
particularidade da hanseníase é que, durante o tratamento ou mesmo após
a cura, é comum que os pacientes enfrentem os chamados “estados
reacionais”. São reações do sistema imunológico, com o agravamento das
lesões e da dor. “O estado reacional é um problema sério. O paciente
começa o tratamento muito esperançoso e, um mês depois, retorna ao
ambulatório com mais lesões, os nervos muito doloridos, febre. E então
precisa ser internado. Essa é uma das complicações da lepra. Acomete de
30% a 40% dos casos”, afirma a pesquisadora.
Depois da cura, parte dos pacientes
também pode continuar desenvolvendo problemas neurológicos. Como explica
Euzenir: “Em não menos que 20% dos casos, os pacientes já curados
desenvolvem neuropatias, tornam-se neuropatas crônicos. Mas as pessoas
às vezes nem associam as incapacidades físicas e a dor à hanseníase,
porque já estão curadas. Elas se acostumam à dor, e permanecem sem a
atenção médica ideal.”
Por isso, o procedimento adotado pelo
Souza-Araújo é que os pacientes permaneçam sendo acompanhados, mesmo
após a cura. “A hanseníase tem grande potencial de provocar
incapacidades e deformidades. Mesmo depois da alta, o paciente precisa
de vigilância permanente da equipe, ao menos pelos próximos 10 anos
seguintes”, explica a fisioterapeuta Lilian Pinheiro, também do
ambulatório.
Educação e informação - A
hanseníase é uma doença sub-reptícia, como define Euzenir. Segundo o
dicionário Aulete, algo “disfarçado, escondido, dissimulado”. A mudança
do nome, de lepra para hanseníase, foi feita na década de 1970
justamente como uma tentativa de afastar o preconceito associado à
doença. Foi uma mudança, porém, controversa. “Basta olhar a epidemia que
era, e a que ainda é hoje, para constatar: a mudança de nome não fez
nenhum efeito. Muito mais importante do que mudar o nome é aceitar a
doença, tornando-a visível em todas as suas facetas: fazendo com que as
pessoas saibam, sobretudo, que tem cura”, defende a pesquisadora.
“Para enfrentar a hanseníase, o
fundamental não é apenas a questão terapêutica”, completa Nery. “A
educação em saúde, as estratégias de informação e a desmistificação da
doença são parte primordial no tratamento.”
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